Autor: Marcelo Bacchi Corrêa da Costa. Advogado. Pós graduado
O “bem de família” é um instituto
jurídico que garante proteção patrimonial familiar, assegurando, assim, as
mínimas condições para uma digna sobrevivência. Pode ser instituído por vontade
própria, observadas as regras do Código Civil Brasileiro (artigos 1.711 e
seguintes úteis) ou, independentemente da manifestação de vontade, ganhar força
normativa erga omnes através da Lei
8.009/1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade deste instituto.
O artigo 1º da Lei descreve o
seguinte: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é
impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial,
fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos
pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses
previstas nesta lei”. O parágrafo único diz: “A impenhorabilidade
compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as
benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso
profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.”
O artigo 5º traz o conceito de
residência: “Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei,
considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade
familiar para moradia permanente”.
Via de regra, o devedor, quando
executado, responde com todo o seu patrimônio pelas dívidas adquiridas,
ressalvadas as exceções legais (artigos 648 e seguintes do CPC), cujos bens
podem ser afetados pelo ato da constrição, penhorando-os para garantir o
pagamento da dívida ao credor.
No entanto, quando o imóvel do
devedor se amoldar nos conceitos de bem de família, a lei determina uma
proteção patrimonial consistente na impossibilidade de se penhorar o imóvel utilizado
como moradia familiar permanente.
Ocorre que a impenhorabilidade do bem
de família comporta as exceções elencadas no artigo 3º da Lei 8.009/1990, a
saber:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível
em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou
de outra natureza, salvo se movido:
II - pelo titular do crédito decorrente do
financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos
créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;
III
– pelo credor da pensão alimentícia,
resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o
devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que
ambos responderão pela dívida; (grifamos) (Redação
dada pela Lei nº 13.144 de 2015)
IV - para cobrança de impostos, predial ou
territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
V - para execução de hipoteca sobre o imóvel
oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;
Veja que a regra da impenhorabilidade
não é absoluta porquanto há exceções advindas na própria lei que regulamenta o
tema. Dentre o rol do artigo 3º, citamos a permissão de se penhorar bem imóvel
do devedor para garantir o pagamento de dívidas provenientes de pensão
alimentícia, mesmo tratando-se de bem de família (inciso III).
Antes da Lei 13.144/2015, o imóvel do
devedor respondia integralmente pelo não pagamento da pensão alimentícia ao
credor, ou seja, a penhora poderia incidir sobre a totalidade do bem imóvel. Pelo
menos era o que descrevia o anterior inciso III do artigo 3º da Lei 8.009/1990,
interpretando-o literalmente. A redação original era: “(...) III – pelo credor da pensão alimentícia”.
Essa exceção da impenhorabilidade
quando se tratar de crédito alimentar foi restringida com o advento da Lei
13.144/2015, de 06 de julho de 2015, que alterou o inciso III do artigo 3º da
Lei 8.009/1990, assegurando especial proteção ao patrimônio do novo cônjuge ou
companheiro do devedor de pensão alimentícia. É uma exceção da exceção.
Entretanto, a doutrina e a
jurisprudência, antes da vigência da nova lei, já se inclinavam no sentido de
se preservar a metade do bem imóvel pertencente ao cônjuge ou companheiro do
devedor de alimentos, por vezes assentando que o imóvel sequer poderia ser
penhorado.
Nas situações fáticas em que o credor
de alimentos solicitava a penhora da totalidade do imóvel do devedor para
garantir o pagamento da dívida alimentar, mesmo se tratando de bem de família, a
preservação da cota-parte do cônjuge ou companheiro era buscada através dos Embargos
de Terceiro no intuito de se desconstituir a penhora outrora determinada. O
pedido era baseado na Súmula 134 do STJ (“Embora intimado da
penhora em imóvel do casal, o cônjuge do executado pode opor embargos de terceiro para defesa de sua meação”); artigo 1.228 do Código Civil, dentre outros.
Malgrado os posicionamentos contrários, estamos
tratando de dívida alimentar, direito personalíssimo do credor, e não dívidas
outras que possibilitam discussões jurídicas sobre preservação de meação
através de Embargos de Terceiro, com invocação de súmula ou outra norma da
legislação. Dívidas de alimento, por sua natureza, não podem ser comparadas com
outras dívidas gerais e/ou quirografárias.
Com o advento da nova lei, certamente
a interposição dos Embargos de Terceiros serão minorados nas situações concernentes
à pensão alimentícia, já que o credor dos alimentos, por expressa disposição
legal, tem agora plena consciência de que poderá requerer a penhora de somente
metade do imóvel do devedor, resguardando-se os direitos de propriedade do
cônjuge ou companheiro. Ainda que se intente a penhora sobre a totalidade do
imóvel, poderá o juiz de plano indeferir o pedido ou aceitar a constrição
somente sobre a parte pertencente do devedor.
Apenas a título de esclarecimento, o
resguardo da meação do cônjuge ou companheiro do devedor da pensão alimentícia
depende do regime de bens provenientes da nova relação conjugal ou da união
estável.
Em que pese ainda as colocações
adversas, e respeitando as posições divergentes, entendo que o novo inciso III
do artigo 3º da Lei 8.009/1990 não comporta interpretação ampliativa. Se o
legislador quisesse tornar totalmente impenhorável o bem de família do devedor
de dívidas alimentícias que contraiu novas núpcias ou convive com outrem, teria
revogado o referido inciso e não restringido o seu alcance.
Com a nova Lei, se o devedor é casado
ou possui união estável com outrem, o seu imóvel, ainda que se trate de bem de
família, poderá sim sofrer constrição judicial através da penhora para garantir
o pagamento ao credor, mesmo que não atinja a totalidade do bem, cumprindo o
que a lei determinada para resguardar os direitos que o cônjuge ou convivente
possui sobre o imóvel penhorado, reservando-se a sua quota parte ou meação.
Assim, ainda que a nova lei tenha
restringido o alcance da constrição para somente a metade pertencente ao
devedor, num nítido retrocesso, por certo não há que se falar em impossibilidade
total de penhora do bem de família, porque não é isso o que a lei editou. As
teses e decisões que afastavam a penhora sobre a totalidade do bem imóvel
familiar do devedor não mais subsistem ante a dicção legal da alteração
legislativa. Se assim não ocorrer estar-se-á praticando atos contra a
legalidade posta.
Outrossim, situações extravagantes
poderão existir. Havendo a penhora e consequentemente a arrematação da
cota-parte do devedor em hasta pública, formar-se-á um condomínio entre o novo
proprietário e o cônjuge ou companheiro do devedor que teve protegido o seu
direito sobre a metade do imóvel.
Na legislação pátria há vários
dispositivos que regulamentam as matérias atinentes aos condomínios e não é
difícil perceber que problemas entre os coproprietários (novo proprietário e
cônjuge ou companheiro do devedor) podem surgir facilmente, citando-se como
exemplo dificuldades no rateio do pagamento das despesas; exigência unilateral de
divisão da coisa comum; imposição sobre a venda do imóvel quando prejudicada a
adjudicação a um só, dentre outros motivos que pode desencadear
constrangimentos e intimidações desarrazoadas.
Doutro lado, a nova lei acabou por
minorar as possibilidades do credor de alimentos ver satisfeito o pagamento do
débito alimentar pelo devedor que contraiu novas núpcias ou convive em união
estável. Se a dívida alimentar for maior que o valor da metade penhorada, o
credor terá ainda que buscar contra o devedor outras formas legais para que a
dívida seja quitada, e não raras vezes, o devedor não tem e não quer ter outros
meios que possam garantir o pagamento do débito.
Por certo, a preservação dos direitos
sobre a metade do imóvel conferida ao coproprietário cônjuge ou companheiro do
devedor carrega em si o objetivo de justiça, segurança jurídica, dignidade da
pessoa e da família, além dos direitos de uso, gozo e disposição inerentes à
propriedade, quando revestido de boa fé.
Entretanto, com o advento da nova
lei, poderá abrir ao devedor uma possibilidade, data venia, de lesão futura aos direitos do credor, já que aquele
poderá contrair novas núpcias e posteriormente deixar de pagar a verba
alimentar por um longo período de tempo, restando ao credor apenas pleitear a
constrição de metade do bem imóvel, talvez insuficiente para a quitação integral
do débito.
A alteração legislativa feita pela
Lei 13.144/2015 carrega em si valores a serem ponderados. De um lado,
restringiu-se o direito do credor de pensão alimentícia ver satisfeito o
pagamento integral da verba alimentar, mais facilmente possível se a penhora
fosse permitida sobre a totalidade do bem imóvel do devedor. De outro lado, a
proteção ao patrimônio do novo cônjuge ou companheiro do devedor,
resguardando-se a sua meação, mas que poderá ser usada como burla aos direitos
do credor.
Entre a possibilidade de fraude e o
recebimento da verba alimentar, não resta qualquer dúvida de que a última deve
prevalecer, razão pela qual a nova complementação restritiva do inciso III do
artigo 3º da Lei 8.009/1990, advinda com a Lei 13.144/2015, trará mais
prejuízos ao credor da pensão alimentícia do que benefícios ao companheiro ou
cônjuge do devedor de alimentos.
A única vantagem na alteração do
referido inciso III é a tendência de se esgotar qualquer discussão sobre a
impenhorabilidade total do bem de família do devedor casado, sob pena de
incorrer o julgador em flagrante desrespeito à ordem legal expressa. Atos de
excussão patrimonial sobre o imóvel familiar do devedor de alimentos são
permitidos, ainda que somente sobre a sua cota-parte, afastando-se assim as
decisões que impunham a impenhorabilidade integral do bem.
O direito como ciência deve evoluir na
medida em que a sociedade avança no tempo. Por vezes justificável, a falta de
sintonia e paralelismo entre as transformações é inerente do próprio sistema
social, mas o retrocesso, nefasto, esvai a confiança depositada.